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sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Didática da Beleza

Odete Soares Rangel


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"A Beleza compõem-se de cabeça, tronco e membros e usualmente é casada com outro. Poder-se-ia daí concluir apressadamente que a Beleza é a galinha do vizinho, o que não seria uma verdade senão parcial. Pois a Beleza algumas vezes não pertence a ninguém e outras a todo mundo.

A beleza, em francês chamada botê, e, em suma, uma certa harmonia física que encanta os olhos, uma excitante graça que fere o intelectual em nós. E quando eu digo intelectual todos sabem que me refiro exatamente ao humano, bruto e irresponsável de minha pobre natureza.

Pode-se começar a estudar a Beleza pela cabeça ou pelos pés, conforme a preferência do estudante. Quem começa pela cabeça encontra logo uma onda de cabelo que para ser beleza e constituir parte da Beleza tem de ser: 1) Sedoso ao contato, 2) Cheiroso ao olfato, 3) Audível quando roçado ao ouvido, 4) Ouro em chamas fulvas, chama em tons brown azulado quando só nossos olhos o tocam, 5) Saboroso, alimentício, dietético e vitamínico ao paladar.

Se, porém, o estudante começa a estudar a Beleza por baixo, encontrará então à sua frente um par de pés que para formar parte da Beleza devem ser: A) Finos, B) Espirituais, C) Arqueados, D) De dedos longos, unhas largas, E) Firmes e harmônicos no pisar.

Resolvido a continuar o estudo, o aluno encontrará então os dois membros da Beleza sustentados por esses pés. Esses dois membros devem ser lisos, cor de pérola tostada, flexíveis, diurnos e noturnos. Se porém o estudante resolve prosseguir seu estudo partindo da grandeza inicial do mar de cabelos soltos ao vento da jovem Beleza que passa e pára, fácil lhe será então, descendo pela testa (que deverá ser ebúrnea) (nota importante): quando menino eu costumava confundir ebúrneo com alabastro - não façam o mesmo a não ser que não tenham conseguido encontrar a Beleza em ebúrneo;caso contrário escolham qualquer dos outros variados tonsem estoque), chegar às sobrancelhas, que devem ser naturalmente arqueadas e sem necessidade de depilação. Além disso, as sobrancelhas serão finas no exterior, engrossando ligeiramente para o canto dos olhos, os quais serão verdes como o mar, azuis como o mar, ou cinzas como o mar, e entrefechados por longos cílios que de tão longos, dêem por si próprios a impressão da distância a percorrer para se atingir a Beleza.

Lateralmente, nessa mesma região de estudo, a Beleza possui dois pavilhões auriculares (nos quais se aninham sons, poemas, música, pipilos de pássaros e, infelizmente, vozes de outros homens) destinados ao exercício da audição e à sustentação de jóias caras que de bom grado lhe ofertamos, senhora. Esses pavilhões auriculares devem ser cartilaginosos, de um rosado transparente, com a parte superior bem redonda e dura e o lóbulo inferior solto do rosto, macio, todo o conjunto dando assim o ar de metade de um coração cortado, ou de uma caverna onde nossas palavras mergulhem para nunca mais. 

As faces da Beleza devem ser naturalmente rosadas, mais rosadas quando qualquer coisa ouvem. Nestes momentos a bomba elétrica que funciona em seu miocárdio deve ligar-se automaticamente fazendo fluir sangue para as finas tessituras capilares de seus poros faciais, tornando-os de vermelho-laranja até vermelho-púrpura. Outras ocasiões em que a bomba ruborizante da Beleza Autêntica funciona é diante de gestos e intenções naturais que Ela se acostumou a encarar como inaturais, e de insinuações tantas a que está sujeita neste mundo de Feiura.

Infelizmente, queridos discípulos, não podemos nos alongar que a hora avança e a noite chega. Compreenderão os maiorzinhos que outros detalhes há para se verificar se uma Beleza é verdadeira e não uma reles imitação dessas que saem da Helena Rubinstein ou do Vogue. Mas esses detalhes só mesmo em nosso curso mais adiantado e mais prolongado poderemos explicar, pois já pertencem ao currículo de especialização na difícil arte de separar o  joio do trigo. Eu disse joio do trigo? Queria dizer tu entre tantas.

Restam-nos, porém, duas palavras de peroração: difícil como seja nossa tarefa não poderíamos terminar nosso curso sem esclarecer aos nossos queridos alunos que, ainda na região facial, no redondo do rosto, um pouco abaixo do nariz (que deve ser aquilino ou grego, com ligeiros frêmitos nervosos nas narinas) ficam os lábios. Estes, numa Beleza digna do nome, serão carnudos, úmidos, vermelhos como tâmaras maduras, vez por outra mordidos por uma fieira de dentes brancos que mal aparecem. Os cantos dos lábios devem ser duros (o que se pode verificar tocando-os com o dedo indicador da mão esquerda) e todo o conjunto deve exprimir inquietação e espera.

Espera, disse-o bem? Então vou indo, que senão me atraso."

Fonte:

CAMPOS, Paulo Mendes. Antologia Brasileira de Humorismo. EDAUTOR. Rio de Janeiro, 1965. p. 190-192.

Minha viagem através do texto


O texto acima é do carioca Milton Viola Fernandes. Ele nasceu em 16.08.1923 e  morreu em 27.03.2012. Era mais conhecido como Millôr Fernandes. Ele foi um exímio desenhista, humorista, dramaturgo, escritor, tradutor e jornalista brasileiro. Eu diria que ele fez um ensaio descrevendo as visões da beleza, segundo a sua veia humorística e metafórica. Mas eu vejo essa beleza representada na figura de uma bela mulher.


Se você lê-lo atentamente perceberá nele uma riqueza de detalhes  permeados de metáforas e intertextualidades.

Diz Millôr que a Beleza seria a galinha do vizinho.  Pois não é assim que reza um velho ditado popular, de que a galinha do vizinho é sempre mais bonita e mais gorda do que a do seu terreiro. Por essa razão, às vezes, até são roubadas. Depois de depenadas e destruídas as provas, elas não têm dono. Sem dados que a identifiquem podem ser de qualquer um, portanto, sem chance de acusações legais.

A beleza é constituída de cabeça, tronco e membros. E é casada com outro. Uma alusão clara de que essa beleza é uma mulher. E o fato se repete em quase todas as partes do texto, como por exemplo, nas expressões harmonia física, excitante graça, onda de cabelo, cabelos soltos ao vento da jovem beleza que passa e que para. Esse que passa e que para pode ser uma alusão a finitude da juventude e da beleza que tiveram sua fase de apogeu, mas se transformam em velhice e, consequentemente, em feiura com a transformação dos traços e formas corporais que perdem elasticidade, ganham celulite,  flacidez, estrias, manchas, etc. Quando, então, surge a desarmonia estética da beleza.

A testa que deverá ser ebúrnea (como marfim). Ebúrneo significa feito de marfim, semelhante ao marfim no aspecto.  Marfim no dicionário de símbolos de Udo Becker significa cor branca e lisura inalterável, é símbolo da pureza e da constância. Assim, a testa deverá ter aspecto claro sem as manchas da idade, jovial e viçosa. Só que com o passar dos tempos, perderá essa constância.

O escritor diz que quando menino confundia a palavra ebúrneo com alabastro. Ebúrneo já lhes disse o que significa. É fácil a confusão, pois alabastro significa  pedra branca ou clara, translúcida, macia, constituída de gipsita. Gipsita é sulfato de cálcio hidratado.

Os olhos serão verdes como o mar, azuis como o mar, ou cinzas como o mar, e entrefechados por longos cílios que dêem a impressão da distância a percorrer para se atingir a Beleza. Alusão da cor dos olhos com a água do mar e da amplitude de ambos, o olhar é tão infinito quanto o mar. Atingir a beleza pode ser uma alusão à beleza da jovem mulher, bem como a beleza da natureza no mar.

Para o escritor, a Beleza possui dois pavilhões auriculares. Nesses, há espaço para os sons, poemas, música, pipilos de pássaros. Mas lamenta haver vozes de outros homens, o que poderia significar que essas formas mais fortes e não tão delicadas do homem não encontram espaço nesse mundo belo feminino, e até inocente da jovem Beleza.

Ele fala da caverna, onde as palavras mergulham para nunca mais. Na visão de Millôr esses pavilhões devem sercartilaginosos, de um rosado transparente, com a parte superior bem redonda e dura e o lóbulo inferior solto do rosto, macio. Esse conjunto harmônico da Beleza devia dar ares de metade de um coração cortado, ou de uma caverna onde as palavras mergulhassem para nunca mais, portanto, das duas fases da vida: juventude e velhice. Metade do coração pode ser uma alusão ao viço da juventude, pois ele cortado teria células, sangue, esse tom rosado que aparece muitas vezes no rosto da jovem beleza. A caverna por sua vez pode aludir a negação da velhice, já que esta representa a "morte" da beleza. Assim sendo, ela deveria se perder na caverna para nunca mais ameaçar a beleza. Esta face da beleza rosada estaria viva para sempre!

A bomba elétrica que funciona no miocárdio (parte muscular do coração  deve fazer fluir sangue). Pode ser uma alusão ao funcionamento do organismo humano que tem o sangue circulando nas veias, e que provoca o rubor da face em virtude das sensações desencadeadas por emoções (muitas pessoas assim ficam quando sentem raiva ou excitação) ou ainda pelas tantas insinuações a que está sujeita, mas que vêm de um mundo de Feiura, contrapondo-se a beleza. As cantadas baratas  e deselegantes de alguns homens se enquadrariam muito bem nessa feiura.

Millôr fala que é preciso analisar outros detalhes para se verificar se uma Beleza é verdadeira e não uma reles imitação dessas que saem da Helena Rubinstein ou do Vogue. A beleza autêntica é aquela que é percebida, sem precisar usar máscaras (maquiagem de linhas famosas como  Helena Rubinstein ou Vogue) que podem transformar uma mulher feia em quase bela. Mas esta não seria autêntica, seria um produto adulterado digamos assim. Essas máscaras não eliminam as marcas do tempo, apenas as atenuam.

Mas esses detalhes seriam ensinados mais adiante, pois pertenciam ao currículo de especialização na difícil arte de separar o  joio do trigo. Ele disse joio do trigo, mas queria dizer tu entre tantas (essa beleza inalterável entre tantas outras, para mim, significando mulher). Essa difícil arte de separar, uma alusão a capacidade de discernimento e dificuldades de uma pessoa em atestar se a beleza é autentica ou está mascarada (maquiada). Também pode ser separar a beleza da feiura, a juventude da velhice.

Aí está mais uma intertextualidade, separar o joio e o trigo. Se  não estou equivocada, na Parábola do Trigo e o Joio (parábola de Jesus), segundo Mateus 13:24-30, quando do  Juízo Final, os anjos vem separar os filhos do maligno (joio ou ervas daninhas) dos filhos do reino (trigo). Também, um homem teria semeado trigo em seu campo, mas o inimigo também plantou joio nele. Ambas as plantas cresceram juntas, os servos indignados sugeriram arrancar o joio. O dono da casa não permitiu. Deixou o joio crescer junto com o trigo até a sua colheita, quando então, ateou fogo no joio. 

Segundo Udo Becker trigo significa a semeadura, o crescimento e a colheita do cereal, especificamente do trigo, simbolizam o nascimento e a morte ou também a morte e o renascimento. Na Grécia antiga a espiga, como fruto do seio materno da terra, também era símbolo do fruto da vida humana. Era emblema de Demeter e tinha um papel central nos mistérios eleusinos. - No Egito o trigo em crescimento era símbolo de Osíris ressuscitada. - Na idade média via-se no grão de trigo um símbolo de Cristo que desce ao mundo dos mortos e ressurge. Até hoje nos objetos litúrgicos a eucaristia é simbolicamente indicada por uma espiga de trigo e um cacho de uvas. A espiga de trigo é ainda símbolo de Maria, pois ela contém os grãos dos quais é obtida a farinha para a hóstia. Maria também é comparada com o campo no qual cresceu o trigo que é Cristo (representada como Nossa Senhora vestida de espigas).

Como você vê a simbologia é fundamental para explicar passagens de um texto. Neste último parágrafo em especial, esse nascimento e morte poderiam representar essa Beleza jovem e a velhice no seu final. Assim  como no sentido inverso, a morte na velhice renascendo em outro ser para trazer novamente à vida, àquela beleza infinita de quem o autor não consegue se desvencilhar. A espiga de trigo símbolo de Maria tem uma magia espiritual e de pureza, pode-se dizer que nessa Beleza jovem também havia essa pureza indicada por vários elementos utilizados pelo escritor no texto todo.

Diz o escritor que restam duas palavras de peroração, o que leva-o a fazer uma caracterização de um rosto humano, concluindo pelos lábios. Ele diz: -Estes, numa Beleza digna do nome, serão carnudos, úmidos, vermelhos como tâmaras maduras, vez por outra mordidos por uma fieira de dentes brancos que mal aparecem. Os cantos dos lábios devem ser duros (o que se pode verificar tocando-os com o dedo indicador da mão esquerda) e todo o conjunto deve exprimir inquietação e espera. O vermelho é a cor da paixão, os lábios carnudos, úmidos e vermelhos representam um objeto de desejo.

Peroração significa a parte final de um discurso, um discurso breve e sentimental ou ainda a última parte de uma sinfonia. Nesse discurso final, pode-se entender o conjunto como o corpo da mulher, a inquietação e a espera como uma ansiedade em possuí-la e atingir o orgasmo.

E encerra o texto dizendo Vou indo, que senão me atraso. O que pode significar que essa mulher estivesse esperando por ele, não podia se atrasar para poder usufruir de toda essa beleza (mulher), seu instrumento de análise, para poder continuar ministrando os estudos com conhecimento de causa, com suas próprias convicções e percepções reais.

Não tive aqui a intenção de dissecar o texto, com descrições perfeitas ou técnicas apuradas, mas sim de contar ao leitor minha viagem através dele. Se estou certa ou errada não sei. Você pode não concordar comigo. Mas foi esta a leitura simplista que consegui fazer. Obviamente que o texto é muito rico, e permitiria continuar o discurso num deleite por longas páginas. 

Por hoje basta! Obrigada a Millôr Fernandes por esse primoroso texto, o qual nos remete a uma viagem interminável pela Beleza!

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