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quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Autopsicografia

Odete Soares Rangel
                                        
                                           "De tanto lidar com sonhos, eu mesmo me converti num sonho. O 
sonho de mim mesmo." Livro do desassossego, Bernardo Soares. 

Autopsicografia - Fernando Pessoa 
                        
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

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Obra poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1992.
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O poema Autopsicografia foi escrito em 1930 e publicado em 1932.  Mas ele é datado de 1º de abril de 1931. É possível que Pessoa tenha escolhido o dia primeiro de abril (dia dos enganos, da mentira) para falar da dicotomia verdade X fingimento.
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É um dos seus mais conhecidos poemas. Nele, o eu lírico detalha o processo de criação poética; fica implícita a solidão interior, o poeta finge  uma dor que não sente. Mas é como se precisasse vivenciá-la para poder criar sua obra. A ficção do poeta é tão real e tão profunda,  que a dor que atormenta os seres humanos,  se insere no texto da ficção, como se ficção fosse. 
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O  poema, em redondilha maior, é composto de quadras (estrofes de quatro versos) de sete sílabas poéticas, com rimas variadas em abab/cdcd/efef, ora ricas ora pobres. A estrutura é semelhante a das quadras populares e cantigas de roda.

A informação essencial está no primeiro verso "O poeta é um fingidor", os versos seguintes defendem essa ideia. Ao afirmar que o poeta é um fingidor, pessoa não se restringe apenas ao poeta, mas aos artistas em geral que representam a realidade.
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Na primeira quadra estabelece-se uma relação entre o poeta e sua obra. Na segunda, a relação está entre o leitor e a obra. Ao criar o mundo fictício para representar o mundo real, o poeta passa para o leitor a ilusão da verdade. E na terceira, está a consequência das duas anteriores.
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Na última quadra, Pessoa estabelece uma relação entre a razão e o coração. O coração, citado como “comboio de corda”, que gira “nas calhas de roda” a entreter a razão. O coração sobrepõe-se a razão, como que um fado predestinado.

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