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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Dom Casmurro, um pouco de intertextualidade - Machado de Assis

Odete Soares Rangel

Em Dom Casmurro o conflito se estabelece a partir da imaginação de Bentinho, quando suspeita do adultério cometido por Capitu com Escobar, assim o enigma está nele e não em Capitu. 

A história narrada em 1ª pessoa, por Bentinho, faz com que os acontecimentos por ele relatados sejam questionáveis, haja vista termos apenas o seu ponto de vista.

Apesar de Capitu e Bentinho terem vivido felizes por algum tempo,essa realidade desmorona quando O marido narrador evolui para um clima especialíssimo de poesia envenenada... Bento, inseguro e ciumento, desconfia que fora traído conforme mencionei no início. 

Escobar, o suposto rival tinha contra si os fatos de Capitu ter chorado em seu enterro e de os olhos de Ezequiel, filho de Bento e Capitu, serem parecidos com os dele, inclusive o menino imitava-o com perfeição. 

As infundadas suspeitas de Bento levaram-no a rebaixar  a  Capitu forte e decidida, à condição de interesseira e dissimulada. Ele, que antes, a obedecia, agora vê nela uma pessoa digna de riso, passando a difamá-la. Os ciúmes de Bento já existiam mesmo antes da paternidade e do casamento. Quando adolescente, ele queria agredi-la, julgá-la e perdoá-la por crimes imaginados por ele, segundo sua necessidade íntima, fatos que justificam sua postura. Ele pode ser visto como o algoz que se fazia de vítima, uma figura obscura. 

Quanto ao narrador, é certo que o ciumento da Glória já existia pronto e acabado no menino de Matacavalos. A acusação dele nas exposições sobre Capitu, quer procedente ou não, é fato. Os sentimentos de menino foram extremados quando fez-se homem, tornou-se uma pessoa amargurada e sofrida, assim não conseguia ter uma relação verdadeira e prazerosa, vivia atormentado por seu próprio fantasma, contrariamente a Capitu que representa uma força de caráter superior a dos demais personagens. Segundo Roberto Schwartz, o novo Bento Santiago, nasce da junção de vontades confusas, em parte, inconfessáveis (o ciúmes, os apetites sexuais diversos) com a autoridade patriarcal. Essa obra é marcada pela ambiguidade dos destinos de Bentinho, Capitu e Ezequiel.

As relações estão centradas, inicialmente, em D. Glória, a proprietária cuja dominação sugere uma autoridade paternal. Ela convive com parentes dependentes, aderentes e escravos. Seu autoritarismo é tanto que traça para o filho o destino do sacerdócio, persuadindo-o a fazer o que ela quer. A dependência está atrelada à autoridade dos proprietários. Dona Glória ao enviuvar adquire muitos bens e passam a viver de rendas. Ela é boa, devota, apegada ao filho e voltada para os serviços da casa. O mando dela não decorre da índole de chefe, mas de ser proprietária.

José Dias é o agregado, um falsário que vive de favores na casa de D. Glória, desta forma não pode ser considerado um homem livre e independente. Em dado momento ele age com extremos de mãe e atenções de servo em relação a Bentinho já que era considerado conselheiro da família. Apesar disso, ele não passava de um moleque de recados, um fingidor que se desmembrava em adulações quando tratava com os superiores. Quando trata com seus similares, eleva-se em dignidade. Esta reside não no que ele é, mas no prestígio que a família lhe dispensa. Inicialmente, José Dias foi submisso ao marido de dona Glória, depois a ela e finalmente ao filho, fato que moldou-o pela necessidade de agradar e servir aos patrões. Fora dessa família ele não se concebe como indivíduo.

Bento enquanto solteiro, submete-se a Dona Glória. Ele não consegue expressar suas idéias, suas vontades, como ocorreu quando ia dizer a sua mãe que não podia ser padre, pois queria casar com Capitu, apenas consegue dizer eu só gosto de mamãe. Ele foge da realidade para a imaginação, tentando encontrar outra saída, ao contrário de Capitu que é forte o bastante para não se desagregar perante a vontade superior. Sujeita-se, também, a Capitu, porém após sua formatura e casamento, torna-se proprietário e chefe de uma família abastada, sua condição muda para autoridade. O ciúme, continua a perturbá-lo. Com suas suspeitas em relação a Capitu, o menino transformou-se em um homem ciumento, um advogado que deixa de ser filho e torna-se marido e proprietário. "[...] Bento deixa de ser filho e se torna marido e proprietário: o seu coração atrapalhado e de "brasa", agora não tem mais como ser contrastado e vai mandar [...]".(Roberto Schwartz). É como se fosse senhor de tudo e vai exigir dos outros relação de dependência, semelhante a de José Dias em relação a Dona Glória.

Capitu é inteligente e possui independência de espírito, ela sobressai-se pela capacidade de reflexão e tomada de decisão, fatores que levam-na a não sujeitar-se ao paternalismo. Conforme Schwartz, Capitu desde cedo fora ambiciosa, calculista, oblíqua e inimiga da sogra. É como se ela viesse substituir o lugar de D. Glória, com ela, Bento poderia realizar tudo quanto desejava. Capitu é o oposto de José Dias no que se refere a dependência. Capitu ao casar-se muda sua condição de vida modesta para a de uma mulher com posses, sente-se liberta. Entretanto, os ciúmes do marido mantêm-na presa em casa.

Vemos que Dom Casmurro como Memórias Póstumas de Brás Cubas relata situações de um tempo passado. Ambos são narrados em 1ª pessoa, assim podem ter ocorrido de maneira diversa a apresentada ao leitor. Brás decide escrever suas memórias começando pela sua morte, Dom Casmurro narrado pelo velho Bento Santiago, apelidado Dom Casmurro, apresenta a história do seu relacionamento amoroso com Capitu e o afastamento deles. 

Dom Casmurro é linear, Memórias Póstumas não. Em ambas as obras temos a presença de digressões, embora em Memórias Póstumas elas sejam mais constantes. Em Brás Cubas, o personagem narrador está morto; em Dom Casmurro, à exceção do personagem narrador, todos os demais personagens estão mortos. Assim, Bentinho pode falar sem temores, aproximando-se de Brás Cubas que nada temia. O adultério praticado por Virgília com Brás em Memórias Póstumas de Brás Cubas é transparente, em Dom Casmurro não dá para afirmar se houve traição de Capitu e Escobar contra Bento Santiago, o que parece mais ser fruto da imaginação fértil deste. 

Concordo com Schwartz quando comenta que Bento foi ver Otelo e interpretou erroneamente o que assistiu, diz ele [...]: a personagem narradora distorce o que vê, deduz mal, e não há razão para aceitar a sua versão dos fatos. Em Brás Cubas o filho de Brás e Virgília morre e ela vai embora. Em D. Casmurro, a criança sobrevive e juntamente com a mãe parte para a Europa. 

Brás Cubas passou pela vida inutilmente, não conseguiu a fama com seu emplastro, não foi ministro, não teve filhos, mostra-se descrente e pessimista frente a vida, exterioriza uma visão cínica, irônica e desencantada de si próprio e dos outros. Em Dom Casmurro, Machado faz uma crítica psicológica e social através da ironia. Bento Santiago casou, teve filho, mas após suspeitar da dupla traição pela mulher amada e seu melhor amigo, torna-se um Dom Casmurro, amargurado, sofrido, incapaz de ter o prazer amoroso de antes, destruiu o que lhe era mais valioso: Capitu. Depreende-se que Dom Casmurro já estava dentro de Bentinho, pois o menino era desconfiado e ciumento. Ver você dormir/Me corta o coração/Se o seu sorriso/É sonho ou traição. Neste verso da música do Kid Abelha, há uma identificação com o tema de Dom Casmurro.

Veja algumas das diferenças e semelhanças, existentes entre D. Casmurro de Machado de Assis e Otelo de Shakespeare. A narrativa em D. Casmurro está em 1ª pessoa e versa sobre a infância e a relação amorosa de Bentinho e Capitu, até a separação. Esta, decorreu do fato de Bentinho suspeitar que Capitu e Escobar, seu melhor amigo, traíram-no.

Já na tragédia de Otelo, a história de um general mouro negro, que instigado por seu subalterno Iago, quase vai a loucura por ciúmes de sua mulher Desdémona, ele a mata por suspeitar que estava sendo traído por ela e Cássio. Entretanto, tardiamente, descobre que se equivocara, a mulher sempre lhe fora fiel. "[...] Além de ser um homem que sempre tivera valores absolutos e se desilude, Otelo é também um homem que ao longo de toda vida, havia usado a morte como solução de conflitos" (Bárbara Heliodora).

Iago, para provar a infidelidade de Desdémona, conseguiu e entregou a Otelo um lenço que fora da mãe deste, com o qual havia presenteado a esposa. Desdémona, por descuido, deixara cair em seu quarto. Em Dom Casmurro, a prova para a infidelidade de Capitu, são os olhos de Ezequiel que seriam iguais aos de Escobar segundo Bento Santiago. Eles, também, eram muito semelhantes e o menino imitava Escobar com perfeição.

O ciúme começou quando da visita de José Dias, o agregado da família Santiago, ao seminário. Nesta, ele insinua a Bentinho que Capitu estava alegre e que não sossegaria enquanto não encontrasse com quem casar. "Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com ela [...]" (D. Casmurro, p. 133). Excessivamente ciumento, Bentinho fez a leitura de que se Capitu andava tão alegre, era porque já namorava outro. Foi nesse momento que iniciaram suas suspeitas em relação à traição de Capitu. O ciúme aumentou à insegurança de Bento, destruindo o que ele mais valorizava: Capitu.

Em Otelo, o ciúme extremou o orgulho que acabou por matar a inocente Desdémona. É Iago quem incita Otelo a acreditar no suposto adultério cometido por ela com Cássio, tenente de seu exército.

Sendo Dom Casmurro narrado em 1ª pessoa, Bentinho é o personagem-narrador, assim ele conta os fatos segundo sua visão, desse modo, ficamos impossibilitados de ter certeza da inocência de Capitu; em Otelo, a tragédia se constitui de falas, que nos dão a certeza da inocência de Desdémona.

Bentinho, submisso a Capitu fazia o que ela lhe determinava; para Desdémona tudo o que Otelo dizia era lei.

No início das duas obras, está demonstrado o preconceito social. Capitu e Bentinho eram de classes sociais diferentes; em Otelo é o caso de uma mulher branca, que casa-se com um negro, além de possuirem grande diferença de idade e culturas completamente diferentes.

Os títulos de ambas as obras, deram-se pelo nome dos personagens principais. D. Casmurro, dá sua própria interpretação ao apelido: "Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia [...]" (D. Casmurro, p. 33). Esse lhe fora atribuído por um viajante que ao recitar-lhe alguns versos, constatou-o de olhos fechados.

Capitu e Desdémona não mudaram seu modo de ser, porém Bento e Otelo se modificaram influenciados pelos ciúmes. Assim, acabaram com a vida das duas personagens embora de formas distintas: abandono de Capitu e morte de Desdémona.

Se você desejar ler o texto integral, acesse o link http://www.livrosgratis.net/download/565/dom-casmurro-machado-de-assis.html e faça o download.

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